quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

O idoso, o segurança e a Peste


Angelica Hoffler
Psicanalista
Cel: 9 9471-4591

Há uma anedota na história da Psicanálise que conta que quando o navio se aproximou dos EUA trazendo Freud para apresentar suas idéias na América, ele teria dito a Jung: Mal sabem que trazemos a Peste. Ser tocado pela Psicanálise é ser contaminado por esta peste, que muda o olhar sobre si mesmo e consequentemente sobre o outro.

Domingo, ao voltar para casa, fui testemunha de um evento que pode ser visto como uma metáfora política. Um senhor idoso estava sendo amparado por um homem, enquanto sua esposa, igualmente idosa e magrinha andava atônita de um lado para o outro.A segurança da estação foi chamada. Demorou para aparecer. Finalmente, quando um dos funcionários chegou, disse que não tinha o que fazer. O homem que ainda amparava o idoso identificou-se como policial e passou um sabão no segurança invocando protocolos de atendimento emergencial. Enquanto isso, outra transeunte ligou para o SAMU e começou a fotografar a situação. Outros que passavam se indignaram e discutiram com o segurança e este resolveu ajudar o senhor a descer as escadas escorado também no policial até uma cadeira de rodas. O supervisor da estação ouviu o caso e deu um número para reclamação. Não se dirigiu ao local. Preferiu ficar discutindo com outro passageiro que ouviu o relato do caso e se ofereceu como testemunha. Como estudante de Medicina estava indignado. O outro segurança que estava ao lado do supervisor tentava "defender" o colega. Mesmo só tendo presenciado a situação até o momento em que ele se dirigira até o senhor e não tendo visto a postura dele a partir daquele momento. 
Passados os ânimos, acudido o senhor, cada um dirigido-se para seu destino a Peste estava lá novamente.
Há um mal-estar que assola a civilização, diz Freud em um dos seus mais belos textos. Mal-estar que provém do mais difícil dos desafios que é viver com o outro. Outro que aponta limites, que não se aceita como objeto, que não atende a nossos desejos. É justamente quando nos damos conta da existência de um outro que vivenciamos o desamparo. E ele estava lá estampado no casal de velhinhos, pobres, adoecidos na estação de trem. 
Diante da impossibilidade de se encontrar asseguramento a quem atribuímos esta função, ou numa outra leitura, a quem foi atribuída esta função, instaura-se a raiva. 
E o amor que vinha como pedido reverte-se em ódio por não encontrar correspondência. E busca alvos. Alvos por vezes tão frágeis quanto os velhinhos pois também são tocados por um tanto de mal-estar.
É disso que trata a Psicanálise. Todos que viveram a cena, se envolveram ou não por ela sofrem de alguma forma. Embora os holofotes tenham lançado suas luzes no casal de velhinhos, cada um, naquele momento, foi tocado pelo mal-estar de uma forma diferente. Marca única que nos faz ser tão singulares ainda que num mesmo evento.

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